segunda-feira, janeiro 23, 2006

Numa fria noite de Lisboa

A noite estava fria, mas nada iria demovê-lo do passo que tinha dado. Num gesto de coragem que nunca antes ousara, o mojito vestiu a sua melhor hortelã, passou-lhe ao de leve as mãos numa vã tentativa de disfarçar o ar engelhado e saiu de casa. Os nervos não aquietavam nem com gelo picado. O encontro era agora. Estava tudo irreversivelmente planeado com a bola de gelado de creme de leite. Sonhava com o momento há vários dias, mas a timidez, seu apanágio de tenra idade, quase lhe prendia as pernas e obstruia a respiração. Tudo iria começar às 22 horas, no Largo do Camões, em caminho para ambos, entre a Rua do Diário de Notícias e o Häagen-Dazs, onde o mojito costumava deixar o olhar preso naquela vitrina onde ela sempre lhe sorria à passagem para o eléctrico que o levava até ao café na esplanada da Graça. O poeta, do cimo da estátua, testemunhou a atitude desajeitada daqueles dois. Envergonhados, trocaram rubores e confessaram-se entre contemplações que dispensaram promessas e sentenças. A bola de gelado nunca alimentara esperanças antes, sentia-se sempre desencorajada por ter interpretado mal o interesse de que tinha ouvido falar do mojito pela tosta de frango do Páginas Tantas. Mas tudo ficou desvendado. O mojito sossegou-a, garantiu-lhe que tudo não passava de uma velha amizade e até lhe falou de uma quente amiga nova, uma tosta de frango e banana no n.º 165 da Rua da Rosa, que ela também tinha de conhecer. Quer-me parecer que se vão dar bem, dizia-lhe. Não demorou muito até se envolverem na sempre amante noite de Lisboa até acabarem a ver nascer o sol no miradouro da Senhora do Monte. Efectivamente, a bola de gelado começara já há minutos a exibir um ar desesperado, mas era tarde. Os primeiros raios de sol da manhã, impiedosos e sem indulgências, derreteram-na e ela desapareceu por entre as pedras da calçada. Para o mojito, aquela amargura era fardo imenso e pouco mais resistiu ao dissabor daquela manhã. Num acto de cólera e desespero, duas noites a seguir, imiscuiu-se numa tertúlia do Bairro Alto e deixou-se beber.

2 comentários:

Catarina disse...

Raio do gajo que tem dom para as palavras.

Anónimo disse...

Very nice site! » » »